SÃO PAULO – Era maio, porque eu estava voltando de Mônaco, 2005, no aeroporto de Nice, a caminho do embarque, toca o celular e a moça diz, Flavio Gomes, você pode vir aqui hoje à tarde, o Trajano quer falar com você, e eu digo que hoje não posso, porque estou em Nice e só chego amanhã de manhã, Então você pode vir amanhã à tarde?, e eu digo que posso, e como ligação em roaming era cara pra caralho, falei que ia e desliguei rapidinho e entrei no avião, e no dia seguinte cheguei, levei a mala para casa, tomei café da manhã e banho de tirar zica de avião, peguei o carro e fui até o Sumaré, parei na pracinha, entrei, fui até a sala decorada com fotos do América e o Trajano perguntou, Flavinho, você entende de futebol?, Entendo, claro, mas entendo mais de corrida, Quer vir trabalhar aqui?, Pra fazer o quê?, Pra ser comentarista do “Bate-Bola” e participar de outros programas, o Paulinho saiu, você topa?, Topo, quanto é o salário?, Cinco paus, OK, mas vamos fazer um programa de automobilismo?, Depois a gente vê isso, vai lá que vai começar, Agora?, Agora, e fui, troquei de camisa, passei na maquiagem e me sentei num banquinho alto que quase tive de tomar impulso para subir, e não lembro quem estava apresentando o programa, falei sobre a rodada que não tinha visto, no dia seguinte recebi uma escala por e-mail, passei a ser escalado para os programas, uns de tarde, outros de noite, estava de saída da rádio, saí, usava terno e gravata no programa de sábado à noite, e fui ficando, e fiz um projeto de programa de automobilismo e virei comentarista de futebol na televisão, televisão que eu já conhecia porque todo ano no fim do ano me chamavam lá para falar do GP do Brasil de Fórmula 1, e então fui ficando, como eu dizia, e o programa de automobilismo saiu, e depois saiu outro que era rapidinho, e aí me colocaram para apresentar os programas, eu nunca tinha feito aquilo, mas fiz, e veio a Copa da Alemanha e não fui para a Alemanha, fiquei por aqui de stand by, e no ano seguinte começou um projeto de rádio, Você faz rádio?, Faço, fiz a vida inteira, Então você vai ser o âncora, e virei o âncora, e era toda quarta e quinta e sábado e domingo, e havia outros âncoras, mas só eu era escalado, e um dia a Kitty veio e disse, Oi, meu âncora favorito, e fiquei feliz de ser o âncora favorito, e então começaram as longas jornadas de quarta, quinta, sábado, domingo, algumas nos estádios, os grandes jogos, e o programa de automobilismo, e as matérias de carros antigos, Vou te dar mais uns três paus pela rádio, OK, vamos em frente, e assim os anos foram se passando, os cafés na Real, a cerveja do fim do dia no boteco que virou quilo, e aquilo foi um horror, um boteco virar quilo, e veio a Olimpíada de Pequim, e fomos para Pequim, e lá eu entrava no IBC cercado pelos amigos porque minha credencial não valia, e lá estava eu fazendo matéria de judô, futebol feminino, atletismo, canoagem e pólo aquático, e na volta os planos para a Copa da África, e acabei não indo para a Copa da África e fiquei chateado, mas não reclamo muito, rádio todos os dias durante a Copa, TV quase todos os dias para apresentar o “Bate-Bola”, e um dia me avisam, Você apresenta o “Pontapé”?, Apresento, claro, Mas é com o Trajano, ele é foda, Apresento, claro, e no primeiro dia sento à mesa, o Trajano chega, Cadê meus jornais?, o Trajano gostava que os jornais ficassem na mesinha entre as duas cadeiras, e os jornais não estavam lá, e ele ficou puto, Não faço mais essa porra!, e faltava um minuto para entrar no ar e ele levantou e foi embora, e aí abriram o programa com a câmera fechada na minha cara e eu disse bom dia, começando o “Pontapé Inicial”, e chamei os destaques, e deu mais um minuto o Trajano voltou bufando, sentou e os jornais chegaram, e ele reclamou no ar dos jornais e eu achei aquilo engraçado, e aí em perguntaram, Caralho, você não ficou nervoso?, e eu disse que não tinha ficado nervoso porque o Trajano era assim mesmo, e todas as manhãs fazíamos o “Pontapé”, e eu mais ouvia do que falava, porque ele falava de música e carnaval e Rio de Janeiro e Bossa Nova e samba e cinema nacional e eu mais ouvia do que falava, e dividir um programa com o chefe é sempre tenso, mas eu nunca ficava tenso, eu chamava o chefe de Zé, e quando você chama um chefe de Zé está tudo bem, e então o projeto da rádio acabou, e então o Zé deixou de ser chefe, e aí ele teve um infarto e foi muito foda isso, mas ficou legal e voltou, e naquelas manhãs, nos intervalos, ele me contava do projeto do livro, e o livro ficou bom pra cacete, e aí eu briguei com torcedores do Grêmio pelo Twitter, me mandaram embora e o Zé, de noite, falou de mim no programa e achei aquilo uma temeridade, e aí a gente não se viu mais durante um tempo, mas nos encontramos num restaurante italiano na Vila Madalena, o Pasquale, que é muito bom, e depois nos encontramos na rua gritando as mesmas coisas, e de vez em quando nos falávamos pelo telefone, e hoje pela manhã eu soube que o Trajano foi demitido e saiu da casa que construiu, e isso me deixou muito, muito espantado com o rumo que as coisas estão tomando, chamei ele para tomar um chope, ou um vinho hoje à noite, e espero que ele possa ir, se bem que o Trajano é famoso e se a gente aparecer em público hoje ninguém vai deixá-lo em paz, então compreenderei se ele não for, mas se ele for vou dizer a ele que sou muito grato por tê-lo tido como chefe, e vou lembrá-lo que um de meus maiores orgulhos foi tê-lo sucedido no mesmo cargo no jornal décadas atrás, isso é realmente uma honra, e vou dizer a ele foi, não será de novo, lembre, citação de escritor americano que serve para tudo na vida, mas vou acrescentar que se temos coisas boas para lembrar, não há nada do que se arrepender, não há nada, nem ninguém que vai apagar a história que você escreveu, e as histórias terminam, se essa terminou, começa outra, Zé.
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