N’ABU DHABI NÃO VAI NADA? (1)

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RIO (algo em comum) – Esse carinho de Hamilton com seu carro é uma das coisas que me fazem admirá-lo profundamente, ainda que possa achá-lo meio exagerado às vezes em algumas coisas – um mix de Neymar e Senna, com o que de pior ambos possuem/possuíam, no gestual e no discurso.

Gostar de carros, tratá-los como gente, parece coisa de maluco. Talvez seja mesmo. Mas me identifico. Vivo falando com os meus. E com os três de corrida — o #96, Meianov e Bon Voyage –, conversava constantemente. Em geral, ao final de uma corrida ou treino, voltando para os boxes. Quase nunca durante uma volta pretensamente rápida, ou no meio de uma prova pretensamente espetacular. Sempre fui grato aos carros pelas alegrias que me dão. Pela liberdade que me oferecem. Pela lealdade que me entregam.

Carros, carros.

“Foi uma classificação muito emocionante para mim, porque foi a última com esse carro”, disse Lewis a Coulthard, mestre de cerimônias em Yas Marina. “Eu provavelmente sou mais próximo a este carro do que já fui a qualquer outro. Foi um privilégio trabalhar com ela este ano.”

Notem que Hamilton chama o W09 de “ela”. Nunca parei para pensar no gênero dos automóveis em inglês. A gente aprende que o idioma tem uma pessoa “neutra”, para “coisas”, o “it” — usa-se o “she/her” para feminino e o “he/him” para masculino. Em italiano, carro é sempre feminino: “la macchina”. Por isso, lá, todos os carros são tratados como garotas. Lembro com carinho do meu querido amigo Stefano Zaino, do “la Repubblica”, contando um episódio com “sua” Tipo durante um protesto contra a conferência do G8 em Gênova em 2001. Ele jura que seu Fiat Tipo branco apareceu em várias imagens na TV e em fotos nos jornais do mundo inteiro. Procurei aqui e não encontrei. Mas ele/a se salvou, em meio a muitos carros virados e incendiados. Zaino estava na redação do jornal, o pau comendo lá fora, quando se lembrou que tinha estacionado o Tipo na rua. Correu para a televisão e viu o pobre Fiat no meio dos conflitos entre manifestantes e policiais, fogo, bombas, cacetetes e fumaça por todos os lados. “Perdi minha Tipo!”, choramingou. No final do dia, quando a situação já tinha sido controlada, foi até o local onde o carro deveria estar e… estava! Intacto, nem chamuscado. Eu me mijava de rir com essa história, que cada vez que ele contava aumentava ainda mais.

Em português brasileiro, há um hibridismo nessa história automotiva. Referimo-nos aos carros, em geral, no masculino. “Meu” carro. “Meu” Opala. “Meu” DKW. “Meu Chevette”. Mas nossa inefável ideologia de gênero marxista-globalista separa “carros” de “peruas”. “Minha” Caravan. “Minha” Vemaguet. “Minha” Marajó. Não sei se nos será permitido seguir com essa pornografia a partir de 1º de janeiro. Tem que acabar com essa safadeza aí, tá ok? Esse Hamilton aí, tem que ver isso daí! É “o” W09 e ele chama de “ela”. É o quê? Transexual? Tem que ver isso daí, tá ok? Acabar com essa doutrinação, tá ok? Sexo é em casa com o papai e com a mamãe, tá ok?

Denúncias, por favor, façam diretamente ao novo ministro da Educação.

Em todo caso, registro aqui minha admiração pelo amor de Hamilton à sua menina prateada — Vettel também batiza seus carros com nomes de mulher. Coulthard perguntou a ele se iria levá-la para casa ao final do campeonato, e ele disse que era segredo. Depois brincou: “Não cabe no meu apartamento, ficará melhor no museu da Mercedes em Stuttgart. Poderei visitá-la quando quiser”.

Fico imaginando o que vai passar pela cabeça do pentacampeão mundial quando, daqui a alguns muitos anos, ele entrar nesse museu e reencontrar a moça, agora silenciosa e à vista de todos em sua intimidade. Um carro, costumo dizer, carrega dentro de si tudo que se passa dentro dele. Amores, namoros, casamentos, brigas, aflições, expectativas, tudo, tudo que acontece num carro fica registrado em suas entranhas, e é por isso que os respeito tanto — os de corrida potencializam tal sentimento; por isso quase choro quando vejo um carro de corrida abandonado.

Hamilton fez a pole para a última etapa do Mundial 2018 sem muita dificuldade, colocando 0s162 sobre Bottas, seu companheiro de equipe. É a quinta primeira fila seguida da Mercedes em Abu Dhabi, façanha inédita em qualquer circuito — nunca um time fez cinco primeiras filas consecutivas na mesma pista. Deve ganhar amanhã, partindo de um grid que mostra exatamente o que foi a temporada: Ferrari logo atrás, com Vettel e Raikkonen em terceiro e quarto, e Red Bull na sequência, Ricciardo em quinto e Verstappen em sexto. Grosjean, Leclerc, Ocon e Hülkenberg fecharam o grupo dos que foram ao Q3.

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Alonso, com uma câmera voltada para seu rosto que será a imagem que a Espanha verá neste fim de semana, ainda conseguiu o milagre de levar a deprimente McLaren ao Q2 e partirá de 15º em seu derradeiro GP. Só outro milagre para pontuar. Espero que pelo menos não quebre e consiga receber a bandeira quadriculada com todas as homenagens que merece — e que começaram com um churrasco no paddock, que deve ser seu melhor momento no fim de semana.

Fernando não conversará muito com seu carro, provavelmente. Talvez o afeto por ele se dê apenas por ter sido o último na categoria que o consagrou. De positivo, no ano da despedida, somente o fato de ter largado à frente de Vandoorne, seu companheiro, nos 21 GPs. Um massacre não muito importante, honraria inglória. Como diz o outro, não é nada, não é nada, não é nada mesmo.

Emoção deve haver amanhã, sim, na Red Bull. Daniel Ricciardo encerra sua longa convivência com o time que o adotou lá atrás, ainda na F-Renault Italiana, em 2007 — a escalada rumo à F-1 foi clássica, incluindo título na F-3 Inglesa em 2009 e um vice na World Series 3.5 da Renault em 2010, quando esse campeonato dividia prestígio com a GP2. Foi ele mesmo quem decidiu não renovar com a fábrica de energéticos, como contou num lindo depoimento ao “The Players’ Tribune” semana passada, em busca de uma nova aventura.

É de novas aventuras que se vive.



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